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Caloteiros do SUS

O ressarcimento dos planos de saúde ao SUS parece um mal necessário, mas aumenta a distância entre público e privado, que deveriam se complementar.


Recentemente explodiram críticas a uma operadora de saúde que obteve desconto para pagamento da sua dívida de ressarcimento ao SUS. Uma vez levantada a questão, alguns críticos lá do Piauí generalizam o fato, anunciando que as operadoras “despacham seus usuários para o sistema público”.


Para quem não sabe, a Lei dos Planos de Saúde determina que o SUS deve ser ressarcido sempre que um beneficiário privado for atendido na rede pública. O Ministério da Saúde tem se empenhado para modernizar a identificação do paciente e sofisticar o cruzamento das informações, visando cumprir fielmente essa regra.


E aí, quando o ressarcimento ao SUS está no centro do debate, sempre me ocorre a pergunta: por que o consumidor de plano de saúde não pode ser atendido no SUS também, assim como qualquer outro cidadão? Já tive a resposta disso.


Em 2008, participando de treinamento ministrado por ex-Presidente da ANS, pessoa pública muito experiente, fiz essa pergunta. Ele me devolveu o assunto com uma provocação: “tá bom meu filho, vamos supor que o ressarcimento seja inconstitucional – então, como vamos fazer para as operadoras não encaminharem os seus atendimentos mais caros para os hospitais públicos? Como coibir isso?”.


Daí, ficou claro para mim que a cobrança nasceu mais como efeito pedagógico/inibitório, que propriamente ressarcitório. Não tem natureza jurídica de multa, mas poderia ter. A resposta arrefeceu minha inquietude com aquilo que eu antes reputava ser injusto. Passei a saber que é apenas inconstitucional, muito embora o STF sustente que não é.


Mas tudo isso nasce de um pressuposto ideológico, intimamente relacionado com o antagonismo existente entre os defensores do SUS e os empresários da Saúde Suplementar. Os dois pilares do sistema de saúde brasileiro, ao invés de funcionarem lado a lado, batem de frente. Um apregoa o conceito de que o setor privado está sempre disposto a roubar do público, enquanto o outro atua na certeza de que o setor público é eternamente ineficiente.


Nesse tema, estou com o Dr. Antonio Quinto Neto:


“Assim, tem-se no país um sistema misto onde a irracionalidade instaurou um duelo constante entre o SUS e o Sistema Suplementar e vice-versa. As disputas e antagonismos insensatamente desperdiçam esforços e recursos.”


Com isso, ouso pensar que o ressarcimento é uma ferramenta de sustentabilidade do SUS sim, mas não deixa de servir também para ampliar a distância entre os pacientes públicos e privados.


Além do que, mesmo que um dia alguém me convença de que o ressarcimento é constitucional (o STF ultimamente tem usado alguns métodos bem eficazes), não me convenço da legalidade do processo de cobrança.


Nem vou discutir aqui a tabela TUNEP, porque já tive que aceitar que ela é mais cara por se tratar de uma verdadeira indenização do uso da máquina pública. Mas o processo administrativo que cursa na ANS me engasga - em que pese todo o meu carinho por aquela turma.


Lá foi montada uma esteira de produção. Na ponta final, há um carimbo de “enviar para a dívida ativa”. Isso está em linha com a fome arrecadatória do Governo.


Nesse ponto, trazemos estatística interessante que reforça a descrença na análise da ANS: quase 70% dos valores cobrados sequer são impugnados administrativamente (dado de 2023). A taxa de impugnação vem caindo ano a ano, desde 2018.


Diante da postura industrial do regulador, o que resta ao operador de saúde é levar o assunto para a Justiça Federal apreciar.


Então, vale diferenciar bem. Existem os contribuintes que dão calote no Governo, e existem aqueles que não concordam com a cobrança, preferindo depositar judicialmente o valor. Nesse caso dos planos de saúde, imaginamos compreensível a resistência em pagar algo que o imposto do cidadão já deveria cobrir.


Mesmo com tudo isso, o Governo já arrecadou bilhões com o tema ressarcimento.


Se olharmos os dados oficiais da ANS, entre 2001 e 2024, os planos de saúde pagaram R$ 6,5 bilhões, além de parcelarem outros R$ 700 milhões.



Perceba, no entanto, que foram depositados judicialmente mais de R$ 1,4 bilhões para discutir a cobrança (suspensão judicial – que só acontece mediante depósito).


Os planos podem ser vilões dos consumidores, mas o embate Operadora versus Fisco parece “conversa de malandro com delegado”. Um é sabichão; o outro já está escolado sobre como lidar com essa sabedoria.


Então, não seria errado imaginar que muito do ressarcimento pode ser indevido. Mas quem vai dizer isso? O Governo Federal, faminto em arrecadar essas quantias? Ou a ANS, cuja esteira está carimbando as cobranças na velocidade máxima?


As esperanças são depositadas no Juiz Federal. Uma pena que na maioria das oportunidades ele diz que não pode se meter no assunto do Poder Executivo. E é por isso que, quem resistiu a pagar o ressarcimento até hoje, vai ter que começar a se entender com o Fisco.


Enfim, o remédio amargo é necessário. E além do gosto ruim, ainda fazem com que ele doa bastante.


Reflexão final: posso chamar de caloteira a pessoa que se nega a pagar valor cobrado indevidamente, mas deposita em juízo? Por outro lado, se o credor abrir mão de uma fatia do crédito para receber e encerrar a briga judicial de décadas, ele estaria errado?


Chama o Procon.

 
 
 

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