“As discussões relacionadas a tecnologias avançadas (terapias gênicas ou curativas) ou indicadas em doenças ultrarraras (até 1 caso em cada 50.000 pessoas) serão pautados em critérios específicos, a serem definidos posteriormente pela Conitec”, diz o documento.
O Ministério da Saúde está aceitando contribuições da sociedade civil até o dia 11 de julho em uma das consultas públicas mais polêmicas colocadas em pauta em 2022.
O objetivo é discutir um documento elaborado pela pasta que propõe o uso de liminares de custo-efetividade para as recomendações da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).
Na prática, seria implementado um teto de gastos para novos medicamentos no SUS – os remédios milionários para doenças raras, por exemplo, seriam tratados como exceções.
Argumentando maior transparência nas decisões que atingem o SUS, o Ministério da Saúde propõe que se estabeleça um valor de referência relativo a um PIB per capita, equivalente a R$ 40.688 (valor de 2021). No caso da necessidade de limiares alternativos, como crianças com doenças raras, é aceito o gasto de até três vezes o valor de referência.
Em nota, a Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras afirma que o texto é vago, e não está claro como foi elaborado. “Os pontos controversos citados no documento não foram efetivamente pactuados e o resultado é interpretado de forma questionável, como pode ser observado na definição do teto de limiares alternativos”, diz a Febrararas.
A associação lembra que a metodologia de definir um limiar baseado no PIB foi abandonado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2016 por não ter a especificidade necessária, e que pode levar a uma decisão equivocada sobre a utilização dos recursos de saúde.
“É compreensível a apreensão diante da entrada de novas tecnologias em saúde, como as terapias avançadas. É fundamental ressaltar, no entanto, que ações intempestivas como a elaboração de um documento com embasamento metodológico pouco transparentes podem gerar problemas graves à saúde pública. Como a própria constituição do SUS define, a sociedade civil realiza o controle dos serviços prestados pelo sistema público de saúde. Desta forma, a Febrararas – como representante dos brasileiros com doenças raras – manifesta-se publicamente contra os posicionamentos apresentados neste documento”, diz a nota.
O grupo afirma que modelos semelhantes ao SUS em outros países mostram que vetar novos tratamentos não é o que traz eficiência para o sistema de saúde, mas sim a modernização na gestão.
A reportagem questionou se o Ministério da Saúde é a favor da implementação do limiar, se a decisão só valeria para incorporações futuras e quais são os próximos passos depois do fim do prazo, mas não recebeu resposta até a publicação desta notícia.
Paciente raro em risco
Em entrevista ao Metrópoles, o presidente da Febrararas e da Casa Hunter, Antoine Daher, explica que, caso seja aprovado o limiar, os tratamentos de doenças raras, de câncer e outras condições crônicas serão afetados. Ele considera a proposta um retrocesso.
“Esta proposta é particularmente nociva às doenças raras por conta de suas especificidades. Estamos falando de medicamentos que demandaram pesquisas de ponta, associadas a um número de pacientes reduzido. De produtos de alto custo, exatamente pela combinação destes elementos”, explica.
Segundo ele, o limiar de custo-efetividade deve deixar claro e transparente o orçamento para cada doença, justificando definição e critérios. Porém, para tecnologias mais novas, não se pode definir esse teto.
Para Daher, a incorporações de terapias avançadas não ameaça o SUS, e a aprovação pode deixar de fora pacientes que precisam de remédios acima do limiar, o que fere o direito constitucional de acesso à saúde.
“Se uma proposta como essa é aprovada, criaremos barreiras à vinda de novas tecnologias para os pacientes brasileiros. Triplicar o valor para adultos ou crianças não vai permitir que a Conitec incorpore mais produtos destinados ao tratamento das doenças raras no Brasil. É um grande limitador, na verdade”, afirma.
O presidente da Febrararas e da Casa Hunter lembra ainda que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) segue as decisões da Conitec, limitando também o acesso a pacientes que têm plano de saúde.
Discussão sobre financiamento
O financiamento do SUS é uma das principais discussões em saúde pública. Enquanto a Constituição Federal garante que o Estado é responsável por oferecer qualquer tratamento ao paciente, falta organização e verba.
No último ano, o gasto do governo com saúde pública foi de 3,8% do PIB, o que representa R$ 1,6 mil por pessoa. O Reino Unido, que tem um sistema de saúde pública que inspirou a criação do SUS, gastou o equivalente a R$ 20 mil por pessoa.
Em um painel promovido pelo Instituto Lado a Lado Pela Vida na última terça (28/6), o ex-ministro da Saúde Nelson Teich afirmou que o problema precisa ser tratado de acordo com a realidade.
“Se não encararmos a situação com a complexidade necessária, o que vamos ter são aqueles projetos românticos e que nunca vão resolver nada. O problema de não ter recurso para incorporar tudo é ter que fazer escolhas. Hoje, o sistema não é coordenado por um gestor, é coordenado pelas forças de mercado, que sempre vão focar no indivíduo e no lucro e nunca em pessoas. O mercado se equilibra no dinheiro, não se equilibra no cuidado”, explicou o oncologista.
Ele destaca ainda que o maior problema não é exatamente o acesso, mas a entrega: quando uma parte do tratamento não é bem feita, a conta fica mais cara no final do processo. Teich defende que a incorporação precisa ser revista para evitar ainda mais desigualdades no sistema.
Novas propostas
O coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos no Setor de Saúde da USP, Marcelo Caldeira Pedroso, sugere que a solução passa por uma parceria melhor entre o serviço público e privado, principalmente na atenção secundária e terciária. “Uma saída é revisitar o sistema como um todo, para maior integração entre o SUS e a rede privada”, explica.
O secretário executivo do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Mauro Guimarães Junqueira, lembra que outro ponto de discussão importante é a divisão do orçamento: no modelo atual, apenas 18% fica com os municípios, que acabam responsáveis por aquisições milionárias sem ter condições.
“É preciso discutir o pacto federativo e redefinir os percentuais de recursos e o que cabe a cada ente federado fazer. Não cabe ao município bancar, por exemplo, um medicamento de alto custo para um paciente, sacrificando toda a população, que vai ficar sem recurso para outros tratamentos. Os municípios colocam R$ 35 bilhões por ano na saúde, 80% de todo o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) arrecadado é colocado na rede pública. A municipalização foi além do limite”, alerta.
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