Desequilíbrio do pacto intergeracional que rege o negócio aumenta os gastos das companhias e tornam a operação deficitária
As dificuldades macroeconômicas enfrentadas nos últimos anos aliadas a alta dos preços dos serviços médicos faz com que o setor de saúde suplementar enfrente a seguinte situação no Brasil: enquanto consegue manter e conquistar idosos como beneficiários dos planos de saúde, perde jovens que ajudam a bancar os custos da operação, desequilibrando o chamado pacto intergeracional que rege o negócio.
A equação é semelhante ao que ocorre na Previdência Social, onde há uma transferência entre as gerações, dado que os que trabalham atualmente pagam a pensão em favor dos inativos, em uma espécie de reserva financeira comum.
O problema, porém, é que tal equação vem sendo desequilibrada, dada a saída dos jovens, que utilizam menos os planos de saúde, mas que contribuem para a saúde financeira do setor, deixando as companhias com um percentual maior de uma faixa etária mais avançada, que utiliza de forma mais frequente os serviços.
Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostram que o número de jovens beneficiários da saúde suplementar vem caindo nos últimos dez anos. Segundo a agência, houve uma queda de 11% nos beneficiários entre 15 e 19 anos no período; de 17% no recorte entre 20 a 24 anos e de 18% entre os jovens de 25 a 29 anos.
Enquanto isso, o número de beneficiários entre 75 a 79 anos subiu 31% no mesmo período, e com 80 anos ou mais cresceu 39%, de acordo com a ANS.
Por isso, segundo fontes ouvidas pelo JOTA, esses novos percentuais desequilibram a equação, aumentando os gastos das companhias e tornando a operação deficitária. “Os impactos nas empresas são preocupantes”, disse Angélica Carlini, advogada especializada no setor de seguros e professora da Escola de Negócios e Seguros.
“No setor de seguros empresariais, temos um impacto menor. Mas nos planos familiares e no de contratos por adesão, o impacto para as empresas do setor de saúde suplementar tem sido grande. O prognóstico é que não haverá melhora enquanto não melhorarmos a acessibilidade para novos entrantes”, afirmou ela.
Não à toa, dados levantados pelo TC Economática mostram que a equação começa a fazer efeito no balanço das empresas de capital aberto do setor no Brasil.
A dívida total bruta das nove empresas listadas na B3 (Rede D’Or, Hapvida, Dasa, Oncoclínicas, Fleury, Kora Saúde, Qualicorp, Mater Dei, Alliar) cresceram no primeiro trimestre deste ano, na comparação com o mesmo período de 2022, passando de R$ 56 bilhões para R$ 71 bilhões no total.
Além disso, a margem líquida, a porcentagem de lucro em relação às receitas dessas companhias, também caiu no mesmo período. As duas empresas de maior valor de mercado do setor na B3 retratam bem tal queda. Enquanto que a Rede D’Or passou de uma margem de 7,13% no primeiro trimestre do ano passado para 4,64% agora, a Hapvida passou de 1,34% para -3,65% no mesmo período.
Para a ANS, apesar de não ser possível cravar que a redução da faixa etária mais jovem provocou prejuízo operacional, os resultados podem ser explicados também pelo aumento dos custos, e, embora menos frequente, também gerados pela queda ou estagnação das receitas e do não controle da sinistralidade.
“As receitas advindas das mensalidades parecem estar estagnadas, especialmente nas grandes operadoras. Essa análise é compatível com o recente histórico do mercado de saúde suplementar: apesar do expressivo aumento de beneficiários desde o início da pandemia, a sinistralidade não foi tão bem controlada”, disse, em nota.
Problemas macroeconômicos atrapalham setor
Apesar de o sinal de alerta já estar ligado com a queda em relação à margem líquida das empresas, para Anderson Mendes, presidente da União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas), o momento não é de grande pânico, mas sim de reflexão para evitar a piora dos indicadores econômicos das empresas do setor.
“Nós estamos em um momento de inflexão. Houve uma corrida na pandemia por planos de saúde. Agora, os sinais que temos é que esse número começa a cair, começando um processo de inflexão. Temos que observar os movimentos que vão ser impactantes ou não, levando em conta essa situação adversa. É o início de um problema, é onde começa a descer a ladeira e isso tem que nos trazer a reflexão”, disse.
Segundo o executivo, o principal ponto que afasta os novos entrantes jovens da saúde suplementar é a dificuldade macroeconômica brasileira, com inadimplência em alta e desemprego ainda em patamares elevados, principalmente para tal faixa etária.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, no primeiro trimestre deste ano, a taxa de desemprego entre os que estão na faixa etária de 18 a 24 anos ficou em 18% no 1º trimestre de 2023.
Aliado ao alto nível de desocupação, os planos também ficaram mais caros. Enquanto a inflação oficial no país foi de 5,79% pelo Índice de Preços pelo Consumidor Amplo (IPCA), os planos tiveram o maior reajuste em 22 anos. No caso dos contratos individuais ou familiares, o índice máximo de reajuste estabelecido pela ANS ficou em 15,5% no ano passado. Neste ano, o teto de reajuste para esses tipos de contrato ficou em 9,63%, conforme anunciou a agência reguladora nesta semana.
“A saída dos jovens também está muito ligada ao aumento do custo do plano de saúde e aquela sensação de pouco uso. É normal que as pessoas passem a se preocupar com determinada coisa à medida que a possibilidade dela ocorrer aumenta. Você tem um uso mais frequente de crianças e idosos, mas existe um espaço ali no meio em que pouco se usa o plano de saúde”, disse Lucas Miglioli, sócio do M3BS Advogados.
Saída pode estar na gestão
Apesar da expectativa de uma melhora macroeconômica já no curto prazo, especialistas ouvidos pelo JOTA acreditam que o setor pode (e deve) apelar para um choque de gestão para conseguir reduzir custos e atrair mais pessoas para a base de clientes.
“A solução é ser mais eficiente. É segurar a curva de crescimento do prêmio para ser mais inclusivo, não afugentando mais as pessoas e as levando a sair. Você precisa levar mais pessoas para o sistema para oxigenar as carteiras. Esse é sem dúvida o antídoto mais sustentável e perene para a solução, sendo mais eficiente e tornar o seguro mais acessível”, disse Anderson Mendes, da Unidas.
Para a professora Angélica Carlini, a gestão deve focar na racionalidade da operação entre a comunidade, com médicos e usuários alinhados.
“Na prática, precisamos criar modelos de gestão que faça com que a pessoa não faça duas, três consultas só porque elas não gostaram do médico, que não façam exames e não vão buscar os resultados. Precisamos dizer às pessoas que elas são beneficiárias, mas também responsáveis pela gestão. E isso inclui os médicos que, por muitas vezes, sugerem ou prescrevem tratamentos ou medicamentos que não estão previstos no rol e que serão um custo para os convênios”, afirmou.
Além da gestão, há também a busca por uma maior flexibilidade na regulação do setor pela ANS.
“Hoje devemos ter uma flexibilidade maior no setor de saúde. Hoje há quatro tipos, referência, hospitalar, ambulatorial e hospitalar com obstetrícia, mas se tivéssemos maior diversidade e amplitude na oferta, poderíamos manter o pacto intergeracional e agregar um número maior de beneficiários”, completa Carlini.
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