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"Obviamente, as pessoas doentes e as pessoas idosas, em geral, não apenas têm maior interesse em contratar um plano privado de assistência à saúde como, provavelmente, são as que mais demandarão os serviços de saúde após a contratação."
Na mitologia grega, Sísifo é um personagem condenado a rolar uma grande pedra até o alto de uma montanha que, quando quase concluída a tarefa, via a pedra rolar montanha abaixo, obrigando-o a recomeçar o trabalho eternamente. Daí se chamar “Trabalho de Sísifo” todo trabalho que, quando próximo de atingir um resultado, se vê na contingência de ser recomeçado, num interminável esforço sem resultado.
O debate nos tribunais sobre a aplicação do reajuste por variação de faixa etária em planos privados de assistência à saúde pode se tornar um trabalho de Sísifo.
Planos privados de assistência à saúde são contratos que preveem a prestação continuada de serviços de saúde ou a cobertura dos custos desses serviços, mediante retribuição financeira, sem limite financeiro para a cobertura, observada a cobertura mínima definida pela legislação de saúde suplementar e a cobertura prevista em contrato.
O mecanismo de financiamento dessa cobertura é o mutualismo. Cabe a cada operadora promover a formação de um fundo comum, alimentado pelos recursos de todos os contribuintes (contratantes, que podem ser pessoas naturais ou jurídicas), fundo esse que servirá para custear os serviços de saúde demandados pelos beneficiários da cobertura.
Como funciona a captação desses recursos?
A captação se dá pela contratação do plano privado de assistência à saúde, que obedece a determinadas balizas fixadas pela legislação.
Pelo lado da demanda, ou seja, de quem contrata, há plena liberdade de contratar, respeitadas, quanto aos planos coletivos, as regras de legitimidade para contratar e de elegibilidade para ser beneficiário definidas na Resolução nº 195, de 2009, da ANS.
Pelo lado da oferta, ou seja, da operadora contratada, há limites maiores à liberdade de contratar. A operadora pode escolher se oferta planos individuais ou se oferta planos coletivos, pode escolher a segmentação assistencial e a área de atuação, mas não tem liberdade plena para escolher se vai celebrar ou não um determinado contrato quando suas condições gerais são ofertadas ao público consumidor (além de ter que observar, quanto aos planos coletivos, as regras de legitimidade para contratar e de elegibilidade para ser beneficiário). É que o artigo 14 da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, proíbe a seleção de riscos por parte da operadora, ou seja, proíbe que a operadora escolha entre celebrar contratos com jovens ou com idosos, com pessoas saudáveis ou doentes.
Obviamente, as pessoas doentes e as pessoas idosas, em geral, não apenas têm maior interesse em contratar um plano privado de assistência à saúde como, provavelmente, são as que mais demandarão os serviços de saúde após a contratação.
Ocorre que o sucesso do mutualismo depende do equilíbrio entre receitas e despesas do fundo comum administrado pela operadora. Como o custeio dos serviços de saúde demandados por uma determinada pessoa pode atingir valores monetários expressivos, a operadora deve compor um conjunto de pessoas em que, a despeito de todos contribuírem, a maioria demande pouco os serviços de saúde para compensar os altos gastos com o custeio dos serviços de saúde demandados pela minoria.
Como se pode perceber, o equilíbrio do fundo comum depende da manutenção de uma maioria saudável e jovem e de uma minoria doente e idosa.
Mas, como alcançar esse equilíbrio se o acesso é franqueado a pessoas saudáveis e a pessoas doentes; a pessoas jovens e a pessoas idosas?
Quanto às pessoas doentes, a legislação busca inibir o comportamento de buscar a contratação do plano privado de assistência à saúde somente quando a pessoa efetivamente necessitar dos serviços de saúde ao permitir às operadoras que imponham determinadas restrições temporárias à cobertura. É o caso das carências, que podem ser impostas para o acesso a qualquer serviço de saúde, e da cobertura parcial temporária, que pode ser imposta para o acesso a determinados serviços de saúde diretamente relacionados a doenças ou lesões de que o beneficiário saiba ser portador ou sofredor no momento da contratação. Ultrapassados os prazos de carência e o prazo de cobertura parcial temporária, o beneficiário tem acesso integral à cobertura contratada, sendo irrelevante a condição de saúde que tinha ao contratar o plano privado de assistência à saúde. A operadora deve considerar esse fato ao precificar o plano privado de assistência à saúde.
Quanto às pessoas idosas, a legislação permite que as operadoras escalonem os preços (ou, no jargão no setor, os valores das contraprestações pecuniárias) conforme a idade do beneficiário: é o reajuste por variação de faixa etária.
Por que os preços não são iguais para todos, jovens e idosos? Porque para manter o equilíbrio do fundo comum a operadora deve atrair mais jovens do que idosos. Se a operadora ofertasse os planos privados de assistência à saúde por preço único, esse preço seria pouco atraente para os jovens e muito atraente para os idosos. O fundo comum seria composto por muitos idosos, naturalmente maiores demandantes de serviços de saúde, e não haveria receita suficiente para custear os serviços de saúde demandados por todos. Haveria o colapso da carteira, de modo que, no fim das contas, ninguém gozaria da cobertura.
Portanto, praticar preços diferenciados por faixa etária nos planos privados de assistência à saúde não é uma questão de afastar idosos. É uma questão de atrair jovens, que, no fim das contas, garantirão a cobertura dos idosos.
Em termos de justiça comutativa, seria justo que cada pessoa pagasse um preço proporcional ao risco que transfere para o fundo comum. Nessa hipótese, haveria o mutualismo por faixa etária. A consequência disso é que os preços dos planos seriam tão atraentes quanto possível para todos, jovens e idosos (tão atraentes quanto possível porque os preços devem considerar a inexorável presença de pessoas doentes na carteira, ou seja, de portadores de doenças crônicas, que exigirão tratamento contínuo).
Ocorre que, levando em conta uma perspectiva de justiça distributiva, pode-se alcançar um meio-termo entre os modelos de preço único e de mutualismo por faixa etária, que é o modelo de pacto intergeracional: os preços são escalonados por faixa etária, mas são estabelecidos limites à variação de preços entre as faixas etárias de modo a criar uma dose de subsídio cruzado entre jovens e idosos.
Note-se: há uma dose de subsídio cruzado e não, pura e simplesmente, um puro e simples subsídio cruzado. Um puro e simples subsídio cruzado consistiria na adoção do modelo de preço único, o qual, como visto, simplesmente levaria ao colapso da carteira e a desassistência de todos. A diferença entre o remédio e o veneno está na dose: é socialmente relevante que jovens ajudem a financiar idosos, tornando o preço do plano mais acessível para idosos, mas não se pode avançar nesse subsídio cruzado a ponto de tornar o preço do plano pouco atraente para o jovem, sob pena de inviabilizar o próprio subsídio cruzado.
Qual modelo adotar – preço único, mutualismo entre faixas etárias ou pacto intergeracional? Se adotado pacto intergeracional, em que termos a variação será limitada?
A Lei nº 9.656, de 1998, não respondeu as essas perguntas. Nem seria bom se o fizesse. É que essas escolhas dependem do contexto observado ao longo do tempo. E o que se tem observado é que esse contexto vem passando por mudanças significativas: a população brasileira está envelhecendo, o que significa que, ano após ano, haverá cada vez menos jovens para cada vez mais idosos; há uma transição epidemiológica em curso firme, o que significa que é cada vez maior a prevalência de doenças crônico-degenerativas em comparação com a prevalência de doenças infectocontagiosas, o que influencia o volume de recursos financeiros necessários para custear a assistência à saúde e há uma crescente incorporação tecnológica tendente a incrementar, mais do que a qualidade dos serviços de saúde, o seu custo.
A dinâmica desses fatores desafia a constante reavaliação da sustentabilidade do pacto intergeracional nos termos em que está posto hoje e pode, se nada mudar, colocar em xeque a própria sustentabilidade de um pacto intergeracional.
Daí porque foi sábia a decisão do Poder Legislativo de confiar ao Poder Executivo e mais especificamente à ANS a decisão de qual modelo de financiamento adotar e de, adotando o pacto intergeracional, definir qual a dose de subsídio cruzado que ele implicará.
E em caso de divergência entre as percepções do contratante e da operadora contratada quanto à legitimidade do reajuste por variação de faixa etária, a quem cabe definir a solução? Ao Poder Judiciário, que detém o monopólio da última palavra.
Isso significa que, ao dar a última palavra sobre um conflito, é sempre bom que o Poder Judiciário substitua as escolhas do Poder Executivo pelas suas próprias escolhas?
O professor Luís Roberto Barroso sintetiza os termos do problema de forma definitiva: “em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal. Para evitar que o Judiciário se transforme em uma indesejável instância hegemônica, a doutrina constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a ingerência judicial: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos. Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou de conhecimento específico. Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente está preparado para realizar a justiça do caso concreto, a micro-justiça, sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público” (Curso de direito constitucional contemporâneo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 450 e 451).
Por tudo o que se expôs até o momento é fácil perceber que mensurar a variação de custos assistenciais por faixa etária e calibrar os limites de variação de preço por faixa etária de modo a promover um subsídio cruzado que seja sustentável não são tarefas simples e intuitivas, que possam ser enfrentadas por um juiz de acordo com o seu sentimento pessoal do quanto é plausível admitir como variação de preço.
Com o advento do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 2003), encontrou-se no § 3º do seu artigo 15 que “É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade”.
Isso levou, num primeiro momento, à interpretação de que o Estatuto do Idoso proibiria reajustes por variação de faixa etária para pessoas idosas, assim entendidas as pessoas que contassem 60 anos ou mais.
Ocorre que a Resolução nº 6, de 1998, do Conselho de Saúde Suplementar, permitia a aplicação do último reajuste aos 70 anos de idade, num escalonamento de reajustes distribuídos por sete faixas etárias.
Diante da interpretação que então se dava ao Estatuto do Idoso e como o reajuste por variação de faixa etária é um imperativo para a sustentabilidade da carteira, não restou à ANS outra saída que não a de reescalonar as faixas etárias de modo que o último reajuste ocorresse antes dos 60 anos. Daí adveio a RN nº 63, de 2003, aplicável aos contratos celebrados a partir de 1º de janeiro de 2004, distribuindo os reajustes em dez faixas etárias, a última delas demarcada pelos 59 anos.
Esse episódio mostra como o ímpeto de impor regras e interpretações aparentemente benfazejas para uns podem trazer consequências maléficas para todos: querendo-se isentar os idosos de reajustes por variação de faixa etária, passou-se a aplicar a todos, antes de se tornarem idosos, reajustes que antes eram distribuídos nas duas últimas faixas etárias previstas na Resolução nº 6, de 1998, do CONSU (60-69 anos e 70 anos ou mais).
Por força do direito adquirido, inserido entre os Direitos e Garantias Fundamentais, os contratos celebrados antes de 1º de janeiro de 2004 continuaram regidos pela Resolução nº 6, de 1998, do CONSU, aplicando-se a RN nº 63, de 2004, somente aos contratos celebrados na sua vigência. A premissa desse regime regulatório é a irretroatividade do Estatuto do Idoso diante dos direitos adquiridos previstos nos contratos já celebrados.
O quanto foi exposto até aqui se poderia supor pacificado no âmbito do Poder Judiciário desde que o Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial nº 1568244/RJ pelo regime de recursos repetitivos, de que vale transcrever parte da ementa:
2. A cláusula de aumento de mensalidade de plano de saúde conforme a mudança de faixa etária do beneficiário encontra fundamento no mutualismo (regime de repartição simples) e na solidariedade intergeracional, além de ser regra atuarial e asseguradora de riscos.
3. Os gastos de tratamento médico-hospitalar de pessoas idosas são geralmente mais altos do que os de pessoas mais jovens, isto é, o risco assistencial varia consideravelmente em função da idade. Com vistas a obter maior equilíbrio financeiro ao plano de saúde, foram estabelecidos preços fracionados em grupos etários a fim de que tanto os jovens quanto os de idade mais avançada paguem um valor compatível com os seus perfis de utilização dos serviços de atenção à saúde.
4. Para que as contraprestações financeiras dos idosos não ficassem extremamente dispendiosas, o ordenamento jurídico pátrio acolheu o princípio da solidariedade intergeracional, a forçar que os de mais tenra idade suportassem parte dos custos gerados pelos mais velhos, originando, assim, subsídios cruzados (mecanismo do community rating modificado).
5. As mensalidades dos mais jovens, apesar de proporcionalmente mais caras, não podem ser majoradas demasiadamente, sob pena de o negócio perder a atratividade para eles, o que colocaria em colapso todo o sistema de saúde suplementar em virtude do fenômeno da seleção adversa (ou antisseleção).
6. A norma do art. 15, § 3º, da Lei nº 10.741/2003, que veda "a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade", apenas inibe o reajuste que consubstanciar discriminação desproporcional ao idoso, ou seja, aquele sem pertinência alguma com o incremento do risco assistencial acobertado pelo contrato.
7. Para evitar abusividades (Súmula nº 469/STJ) nos reajustes das contraprestações pecuniárias dos planos de saúde, alguns parâmetros devem ser observados, tais como (i) a expressa previsão contratual; (ii) não serem aplicados índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem em demasia o consumidor, em manifesto confronto com a equidade e as cláusulas gerais da boa-fé objetiva e da especial proteção ao idoso, dado que aumentos excessivamente elevados, sobretudo para esta última categoria, poderão, de forma discriminatória, impossibilitar a sua permanência no plano; e (iii) respeito às normas expedidas pelos órgãos governamentais: a) No tocante aos contratos antigos e não adaptados, isto é, aos seguros e planos de saúde firmados antes da entrada em vigor da Lei nº 9.656/1998, deve-se seguir o que consta no contrato, respeitadas, quanto à abusividade dos percentuais de aumento, as normas da legislação consumerista e, quanto à validade formal da cláusula, as diretrizes da Súmula Normativa nº 3/2001 da ANS.
b) Em se tratando de contrato (novo) firmado ou adaptado entre 2/1/1999 e 31/12/2003, deverão ser cumpridas as regras constantes na Resolução CONSU nº 6/1998, a qual determina a observância de 7 (sete) faixas etárias e do limite de variação entre a primeira e a última (o reajuste dos maiores de 70 anos não poderá ser superior a 6 (seis) vezes o previsto para os usuários entre 0 e 17 anos), não podendo também a variação de valor na contraprestação atingir o usuário idoso vinculado ao plano ou seguro saúde há mais de 10 (dez) anos [nesse ponto, o STJ está se referindo ao direito previsto no parágrafo único do artigo 15 da Lei nº 9.656, de 1998, que veda reajustes a maiores de 60 anos que participem do sistema de saúde suplementar há mais de 10 anos].
c) Para os contratos (novos) firmados a partir de 1º/1/2004, incidem as regras da RN nº 63/2003 da ANS, que prescreve a observância (i) de 10 (dez) faixas etárias, a última aos 59 anos; (ii) do valor fixado para a última faixa etária não poder ser superior a 6 (seis) vezes o previsto para a primeira; e (iii) da variação acumulada entre a sétima e décima faixas não poder ser superior à variação cumulada entre a primeira e sétima faixas.
8. A abusividade dos aumentos das mensalidades de plano de saúde por inserção do usuário em nova faixa de risco, sobretudo de participantes idosos, deverá ser aferida em cada caso concreto. Tal reajuste será adequado e razoável sempre que o percentual de majoração for justificado atuarialmente, a permitir a continuidade contratual tanto de jovens quanto de idosos, bem como a sobrevivência do próprio fundo mútuo e da operadora, que visa comumente o lucro, o qual não pode ser predatório, haja vista a natureza da atividade econômica explorada: serviço público impróprio ou atividade privada regulamentada, complementar, no caso, ao Serviço Único de Saúde (SUS), de responsabilidade do Estado.
9. Se for reconhecida a abusividade do aumento praticado pela operadora de plano de saúde em virtude da alteração de faixa etária do usuário, para não haver desequilíbrio contratual, faz-se necessária, nos termos do art. 51, § 2º, do CDC, a apuração de percentual adequado e razoável de majoração da mensalidade em virtude da inserção do consumidor na nova faixa de risco, o que deverá ser feito por meio de cálculos atuariais na fase de cumprimento de sentença.
Ocorre que, surpreendentemente, todo o esforço empreendido pelo STJ em examinar o tema de modo a uniformizar a interpretação da lei federal, que é a vocação constitucional daquela Corte, dá sinais de ser tratado como um Trabalho de Sísifo.
Recentemente tivemos a oportunidade de orientar a valorosa pesquisa acadêmica de Daniel Furtado de Oliveira Araújo sobre o tema na Fundação Escola Nacional de Seguros, no qual se constatou que, mesmo após a suposta pacificação do tema pelo STJ, há não poucas decisões judiciais em que os termos do problema não parece ter sido bem compreendido. Examinando julgados das turmas recursais dos juizados especiais da Bahia, a pesquisa observou reiteradas decisões reduzindo o reajuste por variação de faixa etária a 30% do valor da faixa anterior, considerando abusivos reajustes aplicados em conformidade com a Resolução nº 6, de 1998, do CONSU, e com a RN nº 63, de 2003, da ANS.
Poder-se-ia supor que bastaria expor melhor o entendimento do STJ aos demais órgãos jurisdicionais para que a matéria fosse bem compreendida.
Ocorre que recentemente o próprio STJ deu um significativo sinal de vacilação quanto ao entendimento que havia consolidado ao afetar ao regime de recursos repetitivos o julgamento dos Recursos Especiais nº 1716113/DF, 1721776/SP, 1723727/SP, 1728839/SP, 1726285/SP e 1715798/DF.
A questão submetida a julgamento nesses recursos é a “validade de cláusula contratual de plano de saúde coletivo que prevê reajuste por faixa etária e o ônus da prova da base atuarial dessa correção”.
Primeiro, é surpreendente que se vislumbre discutir a aplicabilidade do reajuste por variação de faixa etária separadamente para planos individuais e para planos coletivos. Tecnicamente, não há motivo para dissociar planos individuais e coletivos nesse tema porque o fenômeno do incremento de custos assistenciais de acordo com o envelhecimento das pessoas se apresenta para todas as pessoas, sendo irrelevante se o beneficiário é vinculado a plano individual ou a plano coletivo. O que se pode verificar na prática é que em determinados planos coletivos empresariais o contratante ajuste com a operadora contratada, para um dado período de vigência contratual, um preço único independente da faixa etária em que se situe cada beneficiário, dada a circunstância de que o empregador contratante lidar com uma massa de beneficiários de perfil de risco relativamente homogêneo (população em idade ativa) e dada a circunstância de esse preço único estar sujeito a reajuste livremente pactuado entre as partes a cada período de 12 meses. Ora, nada disso influencia a discussão sobre os limites para a variação de preços por faixa etária que sempre foram os mesmos tanto para planos individuais quanto para planos coletivos ao longo da história da regulação de saúde suplementar brasileira.
Segundo, é surpreendente que se discuta a abusividade dos reajustes por variação de faixa etária – daí se discutir sobre o ônus da prova da base atuarial para o reajuste, que, não é difícil imaginar, se tenderia a imputar às operadoras – aplicados por cada operadora em estrita observância aos parâmetros definidos uniformemente para todas as operadoras pela ANS. Ora, se está claro que os reajustes estão conformes aos parâmetros da ANS, o que depende de simples cálculos matemáticos a partir do cotejo entre o preço no momento da contratação, os reajustes previstos no contrato e os parâmetros definidos pela ANS, não há base atuarial a examinar em cada caso concreto. Pensar o contrário implica desconsiderar a competência legal – e a capacidade institucional – da ANS para disciplinar o tema, desconsiderar todo o trabalho da ANS na definição dos parâmetros para o reajuste por variação de faixa etária a ser observados uniformemente pelas operadoras e desconsiderar que as operadoras, no papel de administrado, de boa-fé precificaram seus planos seguindo os parâmetros definidos pela ANS. No fim das contas, estaria impondo a cada operadora que demonstrasse em cada processo judicial que a ANS estava certa ao definir em ato administrativo normativo os parâmetros a serem observados, na contramão da presunção de veracidade e de legalidade dos atos administrativos e da segurança jurídica.
Nem se pode cogitar de, ao suspeitar da abusividade do percentual de um reajuste por variação de faixa etária, simplesmente substituí-lo por um percentual que se sinta, intuitivamente, ser plausível, ignorando a realidade de que os custos assistenciais variam conforme a idade muito além do que se possa intuir, especialmente se a intuição for direcionada por uma intenção benfazeja que, para promover o bem de um, lançará o destino de todos no caminho do insustentável.
O STJ, no julgamento do paradigmático Recurso Especial nº 1568244/RJ, examinou a normatização infralegal em vigor e orientou o aplicador da lei a observá-la. Parece muito claro que quando o STJ tratou dos requisitos para a admissibilidade do reajuste por variação de faixa etária enumerando “(i) a expressa previsão contratual; (ii) não serem aplicados índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem em demasia o consumidor, em manifesto confronto com a equidade e as cláusulas gerais da boa-fé objetiva e da especial proteção ao idoso, dado que aumentos excessivamente elevados, sobretudo para esta última categoria, poderão, de forma discriminatória, impossibilitar a sua permanência no plano; e (iii) respeito às normas expedidas pelos órgãos governamentais”, de modo a colocar lado a lado os critérios da não abusividade e do respeito às normas regulatórias, o objetivo não foi o de desconsiderar a legitimidade das normas regulatórias vigentes, tanto que o STJ enunciou a solução a ser dada a cada caso a partir dessas mesmas normas; o objetivo foi o de orientar normas regulatórias futuras, dado que o STJ reconheceu nesse precedente que será legítimo, se assim decidir a ANS, passar-se a aplicar o reajuste por variação de faixa etária a idosos mesmo após a entrada em vigor do Estatuto do Idoso, desde que não haja abusividade. Em palavras mais simples e diretas, o STJ apenas ressalvou que o reconhecimento do acerto de tudo o que a ANS fez até então não significava um cheque em branco para o que a ANS poderia passar a fazer a partir de então, passando a prever novo escalonamento de reajustes por variação de faixa etária inclusive entre idosos.
Esperamos que esse debate não se torne um trabalho de Sísifo, desviando esforços da sociedade que poderiam estar sendo empregados na resolução de problemas mais graves e urgentes, como a própria sustentabilidade do setor de saúde suplementar e da oferta do serviço público de saúde.
Samir José Caetano Martins é mestre em Direito (UGF), especialista em direito público (FGV) e graduado em Direito (UERJ). Membro da carreira de Especialista em Regulação de Saúde Suplementar na ANS e professor convidado em cursos de pós-graduação e de educação executiva na FGV, INSPER, UCP e FUNENSEG, entre outros. As opiniões do autor são de sua exclusiva responsabilidade, não representando a posição institucional da ANS.
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