Texto aprovado no Congresso libera profissionais da saúde a prescreverem a técnica como tratamento complementar, mas é criticado por entidades da medicina; entenda o que é a prática e como funciona a legislação hoje
Prática que esteve nos holofotes durante a pandemia da Covid-19 – quando chegou a ser defendida para tratar a infecção pelo coronavírus por via retal –, a ozonioterapia voltou ao debate com a aprovação do Senado Federal de um Projeto de Lei que permite a todos os profissionais de saúde prescreverem a técnica como tratamento complementar de uma gama de doenças. Hoje, o Conselho Federal de Medicina a autoriza os médicos apenas em caráter experimental, dentro de estudos científicos, e a Anvisa permite aparelhos apenas com finalidades odontológicas e estéticas.
O que dizem os médicos sobre ozonioterapia?
O texto foi à sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no último dia 17, e o mandatário tem até o próximo dia 4 para decidir se veta ou sanciona o projeto. No entanto, entidades como a Academia Nacional de Medicina (ANM) e a Associação Médica Brasileira (AMB) já se posicionaram publicamente pelo veto do texto diante da falta de evidências científicas que sustentem a indicação da prática.
— Nós fizemos um grupo de estudos e verificamos que não existe nenhuma comprovação científica do uso da ozonioterapia como método de tratamento. Nós continuamos atentos como uma linha de pesquisa, algo experimental. Mas, como tudo na ciência, é preciso de estudo e, até agora, não existem trabalhos indicando que seja útil e seguro. Nós acreditamos que o presidente Lula não deve sancionar, mas caso sancione continuaremos a ser contra — diz o presidente da ANM, Francisco Sampaio.
Instituição médica mais antiga do Brasil, a ANM divulgou uma carta aberta para o mandatário, aprovada pelos cerca de 90 membros, em que diz que recebeu com “perplexidade e extrema preocupação” o PL e que a ozonioterapia gera “um risco de ilusão em pessoas leigas, portadoras de doenças graves, como câncer, de que condutas dessa natureza possam ter efeito terapêutico”.
— Além da falta de eficácia, não temos trabalhos que mostrem com clareza a questão da segurança. E a ozonioterapia se propõe a uma série de doenças, como câncer, diabetes, esclerose múltipla, HIV, asma, Covid, lesões na pele. Mas eventualmente, a depender da dose, pode trazer danos cardiovasculares, pode levar à irritação das mucosas no caso de aplicação na boca ou na região retal. É uma preocupação esses possíveis efeitos que não sabemos a magnitude e a incidência — destaca o presidente da AMB, César Fernandes.
O ex-presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Gustavo Fernandes, reforça que a entidade não reconhece a ozonioterapia como tratamento complementar para o câncer, algo que é a promessa de grande parte dos anúncios de clínicas que oferecem a técnica no país – embora seja proibida entre os médicos.
— Sempre que tratamentos não clássicos são introduzidos, os pacientes são afastados do tratamento padrão. Não é algo que temos observado com os pacientes oncológicos, mas a depender do discurso após eventual aprovação (do PL) isso se torna um risco sim. Então é um alerta, que mesmo se houver uma aprovação, continue claro para os pacientes que o tratamento convencional não pode ser abandonado — diz.
Do outro lado, Antonio Teixeira, presidente da Associação Brasileira de Ozonioterapia (Aboz) e da Federação Mundial de Ozonioterapia, concorda que a prática não é eficaz para a ampla variedade de diagnósticos que os anúncios em redes sociais e de clínicas apontam, porém defende que há evidência para casos específicos sim.
— Existem pesquisas ao redor do mundo sendo feitas em todas as áreas. O que temos comprovação é para a dor crônica, como lombalgia, osteoartrose, e a inflamação. Nós também queremos protocolos embasados em ciência, e para essas finalidades existem sim evidências. O que tem nas redes apresentando curas e milagres com ozonioterapia também somos contra — diz.
O presidente da Federação Médica Brasileira, Tadeu Calheiros, porém, segue a ANM e a ABM e considera que é preciso "avaliar a qualidade e a validade das evidências" disponíveis:
— Sabemos de alguns casos de tratamentos por ozonioterapia com resultado positivo, mas são tratamentos experimentais que não se encaixam ainda nos padrões das evidências científicas reconhecidas.
Debate no Congresso é criticado
Os especialistas também têm críticas em relação ao tema ser abordado pelo Congresso Nacional. Para o presidente da AMB e o ex-presidente da SBOC, não é o local adequado para o debate sobre a autorização de uma modalidade terapêutica. Eles citam que existem órgãos reguladores, como o CFM e a Anvisa, que têm competência para realizar essa avaliação com caráter técnico.
— O parlamento não é o fórum adequado para discutir um tratamento médico, se fosse não precisaria de órgãos reguladores Os deputados são bem intencionados, mas não é uma matéria do ofício deles — diz o médico à frente da AMB.
Fernandes, da SBOC, lembra que toda prática médica precisa passar por ritos regulatórios que envolvem a análise de evidências que garantam a sua eficácia e segurança, algo que não acontece quando a liberação ocorre por meio de uma lei.
— Qualquer terapia farmacológica precisa passar pelos mesmos trâmites de regulação, com estudos específicos, controlados, dosagens, comparativos com placebo, e por um escrutínio de outros grupos de médicos e cientistas. Acho perigoso termos caminhos alternativos para estabelecer práticas terapêuticas. Se amanhã eu desenvolver algo e não conseguir evidências para passar pelos órgãos padronizados, eu vou procurar outras saídas? — questiona.
Já Sampaio, da ANM, considera que temas médicos podem sim ser debatidos no Congresso, desde que incluam comissões com médicos e cientistas especialistas no assunto. O que, para ele, não foi o caso com a ozonioterapia.
O que é e para que serve a ozonioterapia?
A ozonioterapia é uma prática antiga que envolve o uso terapêutico do gás ozônio, que tem um potencial oxidante e bactericida. Na técnica, ocorre uma mistura do gás com o gás oxigênio, que juntos são aplicados de diversas maneiras no paciente.
— Nossa preocupação maior é a ozonioterapia aplicada de formas como por via retal, como a que se retira sangue de pacientes, trata-se com ozônio e se reintroduz. São métodos de risco e sem comprovação — diz Sampaio.
Em tese, essa aplicação melhoraria a oxigenação dos tecidos onde é feita e levaria a um fortalecimento do sistema imunológico. Mas ambas as alegações não foram comprovadas de forma sólida.
— Nos EUA, a prática não é autorizada. O FDA (agência reguladora americana) já realizou várias ações mais coercitivas.É um tema que gera polêmica no mundo inteiro. Mas a intenção não é causar mais polêmica, mas sim que todas as intervenções sigam o rigor científico — lembra Fernandes, da SBOC. Em outros países, porém, é liberada, como em Portugal.
Quais as regras da ozonioterapia no Brasil?
No Brasil, em 2018, o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, que ganhou destaque pelo suposto envolvimento na compra da vacina da Covid-19 Covaxin durante a pandemia, incluiu a ozonioterapia nas técnicas contempladas pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do Sistema Único de Saúde (SUS) – decisão criticada por especialistas.
— A medicina deve ser feita segundo as melhores evidências disponíveis, todos deveríamos respeitá-las. Curiosamente, hoje tem pessoas que são adeptas a determinados tratamentos, que acreditam neles (mesmo sem evidência). Mas vivemos longe da época em que crenças e convicções são suficientes para pautar nossas decisões terapêuticas — afirma o presidente da AMB.
No mesmo ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou uma resolução em que estabeleceu que “a ozonioterapia não tem reconhecimento científico para o tratamento de doenças” e que, por isso, é “um procedimento ainda em caráter experimental, cuja aplicação clínica não está liberada, devendo ocorrer apenas no ambiente de estudos científicos”.
Procurado, o CFM não comentou sobre o PL, mas reiterou a vigência da resolução. Segundo Teixeira, o órgão reabriu neste ano uma câmara técnica destinada à análise do tema. Outros conselhos, como o de Enfermagem e de Biomedicina, regulamentaram o uso da técnica, permitindo que seus profissionais a realizem. Porém, como a Anvisa não autoriza o uso de máquinas de ozonioterapia por essas especialidades, ela continua proibida.
Teixeira diz que a Aboz não endossa o uso fora dos casos permitidos hoje. Em relação ao PL, considera que a mudança da lei não altera o cenário da regulamentação no Brasil, mas é um primeiro passo:
— Sabemos que a a lei sozinha não muda o cenário. Ela é um primeiro e importante passo, mas há ainda a avaliação da Anvisa, dos conselhos. O cenário da regulamentação hoje no Brasil, em que o CFM define como caráter experimental, é uma fase natural de qualquer terapia que busca ser regulamentada.
Em quais casos a Anvisa aprova a ozonioterapia?
Os únicos casos em que a Anvisa permite o uso dos aparelhos de ozonioterapia são:
Área odontológica: tratamento da cárie dental – ação antimicrobiana; prevenção e tratamento dos quadros inflamatórios/infecciosos; potencialização da fase de sanificação do sistema de canais radiculares; Cirurgia odontológica: auxílio no processo de reparação tecidual.
Estética: auxílio à limpeza e assepsia de pele.
Em nota técnica no ano passado, a Anvisa destacou que o uso da ozonioterapia fora dessas indicações “configura infração sanitária”. Disse ainda que “há riscos à saúde oriundos da utilização indevida e indiscriminada desta tecnologia” e que não foram apresentados estudos que comprovem segurança e eficácia “para fins de aplicação médica ou de indicações de uso diversas daquelas descritas anteriormente”.
Segundo o Ministério da Saúde, a utilização da técnica no SUS por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares é restrita à área da odontologia, feita com aparelhos registrados e autorizados pela Anvisa.
Ainda assim, os procedimentos são facilmente encontrados em anúncios e clínicas privadas por todo o Brasil. Por isso, o ex-presidente da SBOC acredita que o PL pouco mudaria a oferta da terapia, o problema seria a chancela para algo sem comprovação científica.
— É uma prática que já é realizada. Tem gente fazendo no Brasil pelo menos desde a década de 80. Se você procurar no google “ozonioterapia onde fazer”, vão aparecer vários locais. Mas não é uma terapia considerada como válida, como padronizada — diz.
Em relação a possíveis punições pelo CFM aos médicos praticantes caso a lei seja sancionada, Fernandes, da AMB, explica que será uma questão mais complicada, já que haverá uma legislação em tese garantindo o direito daquele profissional de prescrever a terapia.
— A lei é suprema, ela está acima das instituições. Não sei como o CFM vai se posicionar, mas imagino que frente às evidências não há motivo para ele mudar a posição atual. Então cria um embaraço, os médicos ficam autorizados por lei, mas por outro lado não pelo CFM. Isso é matéria jurídica, mas acredito que o conselho não conseguiria punir os médicos que fizerem a indicação — afirma.
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